Saciedade e Longevidade
- tbreves
- 9 de abr. de 2021
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Em Gênesis 6:3 Deus afirma: "...o meu espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seus dias serão 120 anos."
O que significariam “anos” no pensamento divino?
...mil anos, aos teus olhos, são como o dia de ontem que se foi, e como a vigília da noite. (Salmo 90:4)
Qualquer número de anos atribuído à vida do homem, portanto, denotaria apenas transitoriedade: 120 ou 120.000.
É comum se pensar que Deus reduziu a duração da vida do homem para 120 anos, uma vez que Adão teria vivido 930 anos e Noé 950.
A meu ver, Deus não limitou a vida do homem a um certo número de anos; ele a definiu.

Os números, na Bíblia hebraica, são sobretudo convenções numéricas – princípios de ordenação do cosmos – cujo significado está muito além do seu valor aritmético.
Mais que uma contagem, 120 é um ciclo completo e perfeito – uma encadeação ideal para que a consciência que o humano tem da vida e de Deus, resida em seu corpo de pó, sendo que a própria terra – origem e destino do homem – também pertence a Deus.
Moisés é o primeiro homem bíblico a viver 120 anos ... e não se lhe escureceram os olhos nem se lhe abateu o vigor. ( Deuteronômio 34:7).
A partir daí, viver até os 120 tornou-se uma bênção no judaísmo, até hoje.
No entanto, o que é mais relevante nos 120 anos da vida de Moisés é que ele viveu três ciclos completos de 40 anos.
Aos 40 anos, ele matou um algoz e fugiu do Egito; então casou-se, teve filhos e apascentou os rebanhos de seu sogro em Midiã por 40 anos; aos 80, ouviu o chamado de Deus e regressou para liderar os israelitas por 40 anos no deserto, e aos 120, ele os conduziu à Terra Prometida, que vislumbrou à distância.
120 seria, então, uma perspectiva e não um número!
Corresponderia a um percurso que compreende três gerações, como lemos no Deuteronômio:
"...observes os estatutos e mandamentos que hoje te ordeno – tu, teu filho e teu neto – todos os dias da tua vida , para que os teus dias se prolonguem." ( Deuteronômio 6:2 )
Uma vida longa e produtiva é, sem dúvida, uma das mais importantes bênçãos divinas e seu sentido maior é ver crescer os filhos e os filhos dos filhos, permitindo que a vida deles seja parte da nossa, enquanto nossa vida é parte da deles.
"...não pensei em ver-te novamente, e eis que vejo teus filhos, diz Jacó a José no Egito, sentindo-se abençoado." (Gênesis 48:11).
Na Bíblia hebraica, a vida não precisa ser eterna para ser significativa; o tempo bíblico é cíclico, teocêntrico e não antropocêntrico e linear, como no pensamento ocidental.
No pensamento grego, no momento em que nascemos, começamos a nos aproximar da nossa morte. Já na Bíblia hebraica, o tempo progride em ciclos e o homem não caminha linearmente em direção à sua morte; ao contrário, o homem caminha em direção à completude de sua vida, à realização de cada uma de suas etapas.
O horizonte da vida, no pensamento bíblico, é a própria vida.
Para tudo, há o tempo de nascer e o tempo de morrer. A Bíblia afirma que "Abraão morreu velho, avançado em dias, e se foi em boa saciedade." ( Gênesis 25:8 ).
Esta expressão única e peculiar “boa saciedade”, em hebraico seiváh továh, implica que Abraão estava saciado de vida.
Na Bíblia hebraica, a saciedade é uma grande bênção:
"...comereis o vosso pão a fartar e vivereis seguros na vossa terra." (Levítico 26:5)
"...comerás e te saciarás e louvarás o Senhor, teu Deus, pela boa terra que te deu." (Deuteronômio 8:10)
Em contrapartida, não alcançar a saciedade está elencado no conjunto das maldições que recairão sobre aqueles que caminharem contrariamente a Deus e violarem a sua aliança.
"...dez mulheres cozerão o vosso pão num só forno e vo-lo entregarão por peso; comereis , porém não vos fartareis." (Levítico 26:26)
Saciedade é a paz da alma, a satisfação e anulação dos desejos que a movem.
Animado pelo sopro divino que lhe confere vida (nishmat chaim) o humano não possui alma: todo ele é alma, alma vivente (nefesh chaia , como lemos em Gênesis 2:7)
Ambos os termos hebraicos neshamáh e néfesh partilham a ideia básica de respiração, vida e desejo, assim como seus cognatos no acádio, ugarítico e árabe.
Em acádio, napashtum significa garganta e vida; o ugarítico npsh designa respiração, apetite, desejo ; em árabe, nafsun é respiração e apetite, e vida, de um modo geral.
Esse ser-alma, que somos, uma vez livre de todo desejo e vontade, que é sua força motriz, repousa. Por essa razão, talvez, a morte seja laconicamente descrita na Bíblia como repousar junto aos ancestrais.
"E tu irás para os teus pais em paz; serás sepultado em ditosa velhice – diz Deus a Abraão." (Gênesis 15:15).
Como vimos, Abraão não apenas deixou esse mundo saciado, mas em boa saciedade.
O termo “bom “(tov) é uma importante palavra–guia na Bíblia hebraica; independentemente do contexto, sempre remete o leitor-ouvinte ao relato inicial da criação : e viu Deus que era bom.
O termo “bom”, que denota sanção e aprovação divinas, ocorre 7 vezes no primeiro capítulo do Gênesis, com ênfase especial para o sexto dia de criação quando "...viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom." (Gênesis 1:31).
Uma só vez Deus diz: não é bom! (lo’ tov) em Gênesis 2:18: ...não é bom que o homem seja só!
A fim de cumprir o número de seus dias e a finalidade de sua vida, a fim de alcançar a terceira geração e transmitir-lhe a torah de Deus, o homem deve ter um contraparte que lhe corresponda.
Para cada homem e para cada mulher no mundo, Deus criou um contraparte e a relação que os une reflete a natureza carnal-espiritual dos humanos:
"o homem adere à sua mulher e são uma só carne." (Gênesis 2:24)
O verbo davaq (que traduzo como aderir e cujo sentido literal é grudar, colar) também é empregado na Bíblia para designar a aderência do justo a Deus.
O emprego desse verbo para designar a aderência do homem à sua mulher alça o ato sexual à esfera espiritual e o torna sublime, não apenas porque restaura a unidade primeva do gênero humano – quando homem e mulher eram um – mas, sobretudo, porque celebra sua união espiritual com Deus. Obviamente, não há menção alguma à reprodução; davaq denota simplesmente amor e devoção. Assim, caminham os humanos pela vida, aos pares; o par passa a ser o unitário, a medida ideal para que o humano cumpra os dias de sua vida.
Volto ao homem Abraão, para encontrá-lo em sua tenda, insatisfeito, queixando-se a Deus pelo que (ainda) não recebeu:
"Senhor Deus, que me darás, eu caminho pela vida desprovido ....porque a mim não deste descendência!" (Gênesis 15:2-3)
Como sua tenda era estreita, o patriarca não podia senão olhar para baixo, para suas mãos vazias; o seu horizonte era o de suas próprias preocupações, que lhe abatiam o ânimo.
Porque te curvas, ó minha alma, gemendo dentro de mim? Lamenta o salmista (Salmo 42-43:6)
Estreito (tsar, em hebraico) é um termo importante para o homem bíblico, porque designa opressão, angústia e tribulação – que são vivenciadas através da sensação física de compressão (i.e., estreitamento) das paredes do coração, sítio do discernimento, na percepção semita . O coração, oprimido e embotado pela tristeza, torna-se incapaz de discernir.
Deus ouve o lamento do patriarca e, conduzindo-o para fora da tenda, lhe diz ...ergue os olhos! Abraão vê o céu, estrelado, em sua amplitude infinita.
Ele pode ver as estrelas; mas poderá contá-las? Abraão se dá conta, nesse momento, de que essa é a medida do homem em relação a Deus e à sua criação.
O horizonte da sua mente se expande; ele compreende e aceita.
Deus salvou a consciência de Abraão de seu estreitamento, expandindo-a. O verbo salvar em hebraico (lehoshí’a) encerra em si o sentido de livrar da opressão, expandir, alargar o que está estreito.
No Salmo 91, Deus enuncia o entrelaçamento visceral entre as ideias de salvação, saciedade e vida longa:
Porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei; pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome; ele me invocará e eu lhe responderei; na sua angústia (tsaráh), eu estarei com ele, livrá-lo-ei e o glorificarei; saciá-lo-ei com longa vida e lhe mostrarei minha salvação. (Salmo 91: 14 -15)
Não se pode desejar mais do que a saciedade;
Não se pode esperar mais do que a salvação.
120, então, não é um número, nem uma perspectiva.
120 é uma promessa de vida. Independente de quantos anos realmente Deus nos permita viver, viveremos bem estando com Ele.
Suzana Chwarts.
Deus abençoe!
Pr. Thiago Breves



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